Última alteração: 2012-07-25
Resumo
Este trabalho é resultado de uma pesquisa de mestrado do Programa de Pós-Graduação em Psicologia - PPI, da Universidade Estadual de Maringá, cuja dissertação foi defendida no ano de 2011 e está inserida no Grupo de Estudos e Pesquisas sobre o Higienismo e o Eugenismo – GEPHE, fazendo parte neste congresso do Seminário do PPI.
O objetivo deste estudo foi compreender o “voltar para casa” do “morador” de hospital psiquiátrico, sendo “morador” de hospital psiquiátrico entendido como aquele usuário que ficou por mais de um ano, ininterrupto, recolhido em instituição psiquiátrica, já saiu do período de crise, está de alta hospitalar, porém continua internado (Brasil. Ministério da Saúde, 2003).
Com base no informativo eletrônico publicado periodicamente pelo Ministério da Saúde (Brasil. Ministério da Saúde, 2010a), calcula-se que ainda existem aproximadamente 10.722 usuários vivendo como “moradores” de hospitais psiquiátricos em nosso país, muito embora, a Política Nacional de Saúde Mental oriente, desde a Lei 10.216 de 6 de abril de 2001, que o atendimento à saúde mental seja centrado na rede comunitária e nos serviços extra-hospitalares, substituindo o cuidado oferecido pelos hospitais psiquiátricos. Dentre os serviços que fazem parte da rede de atenção à saúde mental, estão incluídos os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), as ações de saúde mental na atenção básica, os leitos psiquiátricos em hospitais gerais, os Serviços Residenciais Terapêuticos e o Programa de Volta para Casa (Brasil. Ministério da Saúde, 2010a).
Estes dois últimos dispositivos podem ser considerados recursos específicos para os “moradores” de hospitais psiquiátricos, uma vez que, os Serviços Residenciais Terapêuticos destinam-se a pessoas “(...) que não possuam suporte social e laços familiares” (Portaria nº106 de 11 de fevereiro de 2000). Já o Programa de Volta para Casa, prevê o pagamento de um auxílio-reabilitação psicossocial, de caráter financeiro, para pessoas com transtornos mentais egressas de longas internações (mais de dois anos). Durante o período em que estão vinculados ao Programa, os usuários devem frequentar o Centro de Atenção Psicossocial – CAPS e serem acompanhados pela equipe de saúde mental do município. O benefício tem duração de um ano e pode ser renovado por mais um, contemplando pessoas que residem com suas próprias famílias ou substitutas ou, ainda, habitam os Serviços Residenciais Terapêuticos – SRTs (Brasil. Ministério da Saúde, 2003).
Com todos esses serviços previstos na legislação como parte da rede de atenção à saúde mental, corremos o risco de adjetivar a situação dos “moradores” de hospital psiquiátrico como algo simples de se resolver. No entanto, o Ministério da Saúde argumenta que o número de beneficiários do Programa de Volta para Casa é menor do que o desejável e prevê que este número no início de 2011 correspondia a 1/3 das pessoas estimadas como “moradoras” de hospital psiquiátrico (Brasil. Ministério da Saúde, 2011b), afirmando que vários fatores influenciam o processo de desinstitucionalização: “(...) a longa permanência nos hospitais psiquiátricos não se justifica pela situação clínica, mas por questões familiares, sociais, culturais, econômicas e políticas” (Brasil. Ministério da Saúde, 2011a, p.10).
Com o intuito de conhecer essas questões realizamos um estudo junto a familiares de pessoas que viveram anos como “moradoras” de hospital psiquiátrico, buscando compreender como se dá o “voltar para casa” dessas pessoas. Por meio de uma pesquisa de campo de caráter exploratório foram realizadas entrevistas semi-estruturadas, para ouvir os familiares de 04 ex-“moradores” de hospital psiquiátrico, selecionados a partir dos seguintes critérios: que o ex-“morador” estivesse cadastrado como usuário da rede pública de atenção à saúde mental de Maringá-PR no ano de 2009 e que o mesmo tivesse referência familiar conhecida e residente em Maringá-PR ou região. Além dos familiares, foram entrevistadas a Psicóloga do Sanatório Maringá e a Assistente Social da Promotoria de Defesa da Saúde Pública e Saúde do Trabalhador, já que ambas acompanharam o processo de “voltar para casa” dos “moradores” de hospital psiquiátrico enfocados neste estudo. Por se tratar de uma pesquisa envolvendo seres humanos, este estudo contou com a aprovação do Comitê Permanente de Ética em Pesquisa envolvendo Seres Humanos da Universidade Estadual de Maringá, de acordo com o parecer nº285/2010.
Após a coleta de dados, o material recolhido foi analisado e articulado considerando-se a técnica da história oral, que segundo Thompson (1992, p. 44), “(...) é uma história construída em torno de pessoas”, no caso deste estudo tendo como base duas das maneiras descritas pelo autor: a utilização de narrativas, de diferentes pessoas, sobre um enfoque e a utilização de outras fontes complementares à história oral, tais como os dados fornecidos pela Secretaria Municipal de Saúde de Maringá, os procedimentos da Promotoria de Defesa da Saúde Pública e Saúde do Trabalhador e, ainda, as informações teóricas sobre os assuntos discutidos nesta pesquisa. Todos os dados coletados foram reunidos em torno de temas comuns, tratados por meio de uma extensiva análise, correlacionados com o referencial teórico pesquisado e analisados sob a lente da Política Nacional de Saúde Mental.
Os resultados indicaram que a maior parte dos ex-“moradores” enfocados neste estudo, chegaram a esta condição nesta última década, quando a legislação em saúde mental já previa o tratamento por meio da rede extra-hospitalar. No momento de crise, o hospital psiquiátrico foi o único recurso encontrado por todos os participantes da pesquisa, como se existisse um caminho traçado: transtorno mental pressupõe internação em hospital psiquiátrico. Sabe-se que em alguns momentos, a pessoa com transtorno mental poderá necessitar de uma internação, porém a Política Nacional de Saúde Mental prevê que a mesma seja realizada em hospital geral, por meios menos invasivos possíveis e pelo menor período de tempo possível. Aliado ao atendimento em hospitais gerais no momento de crise, as intervenções nas áreas da assistência social, habitação, ou seja, as ações intersetoriais, e o tratamento na rede de atenção à saúde mental, após estabilização dos sintomas, podem proporcionar outro destino à pessoa com transtorno mental que não seja “morar” em hospital psiquiátrico.
É importante lembrar que o modelo de atenção à saúde mental pautado em internações psiquiátricas já era questionado, no início do século XX, por alguns dos profissionais que faziam parte da Liga Brasileira de Higiene Mental – LBHM – ao observarem que o atendimento, quando não se valia do isolamento, era melhor, mais eficaz e mais econômico (Lopes, 1932). Eles prezavam por esse atendimento quando ainda nem usufruíam dos psicotrópicos, que hoje garantem melhor controle dos sintomas advindos dos transtornos mentais, tornando ainda mais viável uma proposta de tratar, sem isolar.
Sendo o hospital psiquiátrico considerado uma instituição totalitária algumas das características que a forma de organização dessas instituições imprimem naqueles que a freqüentam, puderam ser constatadas por meio desta pesquisa. O desejo do paciente em viver no hospital psiquiátrico, em vez de viver fora e usufruir do convívio social, ou mesmo, a perda da noção temporal, de papéis sociais, como aqueles derivados do estudo e do trabalho, foram algumas dessas características, já apontadas por Goffman (2008), e que puderam ser reafirmadas neste estudo.
Este estudo também evidenciou que o processo de passar de “morador” a ex-“morador” de hospital psiquiátrico, não implica somente voltar para um lar, para um lugar de onde partiu e agora vai retornar, para uma família com quem antes habitava e que agora receberá (ou não) essa pessoa com transtorno mental após a alta hospitalar. Furtado (2006), revela que dos 1016 beneficiários do Programa de Volta para Casa – PVC, cadastrados na época de sua pesquisa, 810 residiam em casas dos Serviços Residenciais Terapêuticos, ou seja, grande parte não havia retornado aos seus lares no sentido comum do termo. Tal como o autor, nesta pesquisa, foi possível verificar que dos quatro ex-“moradores” enfocados, apenas Tadeu havia voltado para sua casa, enquanto, Paulo estava em um Serviço Residencial Terapêutico, Alberto em um pensionato e Elvira estava morando com uma filha com a qual não havia convivido durante sua vida. Considera-se, portanto, que são múltiplos os sentidos que o “voltar para casa” pode ter, descartando um único e pré-definido destino após a saída da instituição psiquiátrica.
No que se refere à assistência em saúde mental recebida pelos ex-“moradores” de hospital psiquiátrico, destacamos que em alguns casos ela se mantém apenas por intermédio da medicação dos sintomas, em outros, ela não conta com a participação familiar, que preferiu deixar a pessoa com transtorno mental aos cuidados dos profissionais em outro município, já que onde a família reside não há qualquer serviço de saúde mental, ou mesmo porque os familiares temem não saber o que fazer ou não receber o apoio necessário dos serviços de saúde mental em momentos de crise. Para Amarante e Guljor (2010), após deixar o hospital, o paciente necessita de um acompanhamento contínuo, pautado na mediação e não na tutela e por intermédio da criação de recursos no território onde ele vive. Nesse sentido, consideramos que a atuação da equipe da Estratégia Saúde da Família – ESF– deve contribuir para o monitoramento do quadro da pessoa com transtorno mental, bem como para fornecer esclarecimentos quanto às dúvidas, mitos e preconceitos que a família pode ter.
É necessário destacar que o “voltar para casa” dos “moradores” de hospital psiquiátrico enfocados neste estudo contou com a atuação conjunta do Ministério Público e do Conselho Municipal de Saúde de Maringá. Se, por um lado, isso indica que o retorno desses “moradores” não está ocorrendo de forma espontânea, por outro lado, a atuação desses órgãos permite que alguns encaminhamentos sejam dados à situação desses “moradores”, que talvez lá permanecessem, não fosse tal atuação.
De modo geral, os resultados indicaram ainda que a prática de “voltar para casa”, embora possa ser considerada como um avanço, nem sempre tem garantido o abandono da lógica manicomial, assim como o fato de contar com uma política de Estado que prioriza o atendimento extra-hospitalar não garante a sua concretização. Para tanto, é necessário determinação da sociedade, intervindo e dando vida ao que está previsto em Lei, fazendo um movimento constante de avaliação das ações propostas, mesmo depois de implantadas e implementadas. Assim, entende-se que o atendimento em rede, desde os primeiros sinais de transtorno mental, pode mudar os rumos da vida da pessoa com transtorno mental, permitindo que o enredo que constitui a história das pessoas com transtorno mental não contemple mais o “morar” em hospital psiquiátrico. Dessa forma, pode-se compreender que o medo, o desconhecimento, a falta de informações, o preconceito da loucura e tantos outros aspectos que envolvem esta questão e que vão além do nível individual, podem ser trabalhados na sociedade a partir da convivência em comunidade.
Eixo temático: 2. Psicologia e Políticas Públicas
Referências
Amarante, P. D. de C. & Guljor, A. P. (2010). Reforma psiquiátrica e desinstitucionalização: a (re)construção da demanda no corpo social. In R. Pinheiro & R. A. MATTOS (Orgs.). Construção social da demanda: direito à saúde, trabalho em equipe, participação e espaços públicos (2a ed., pp. 67-78). Rio de Janeiro: CEPESC: IMS/UERJ: ABRASCO.
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