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Os Centros de atenção Psicossocial (CAPS): reflexões sobre trabalho, formação e capacitação dos trabalhadores na Reforma psiquiátrica.
Maria Aparecida Moraes Burali, Odair Furtado

Última alteração: 2012-07-15

Resumo


Abordar o tema do trabalho e do trabalhador de saúde mental nos CAPS é crucial, nesse momento em que figuramos, conforme Tabela 2 – Indicador de Cobertura CAPS/100.000 habitantes por ano e UF (Brasil, 2002‐ 2011), com um total de 1742 CAPS no território Nacional, em que no Estado do Paraná somamos um total de 92 CAPS, ficando acima da média em termos de coeficiente nacional (7,6), o que demonstra que em termos de estrutura da Rede de Atenção em Saúde mental, houve significativos avanços em termos quantitativos.     Dentro dessa Rede de serviços substitutivos, também é inegável, que ao analisar o percurso de experimentações para construção de CAPS o quanto, como afirma Merhy (2007), esse serviço tem se mostrado produtivo para gerar processos antimanicomiais e melhorar a vida de milhares de usuários. Vale destacar que o CAPS, no plano do discurso, ocupa ou deveria ocupar o “lugar” que faz a crítica do mundo manicomial e, ao mesmo tempo, em que está construindo práticas alternativas e substitutivas. Práticas, essas, que se fazem mediante um intenso processo de construção que não acontece somente mediante decreto, mas no cotidiano dos trabalhadores implicados política e afetivamente com o projeto de transformação do modo com a sociedade tem se relacionado com a loucura.

No documento “Reforma Psiquiátrica e política de saúde mental no Brasil “ , se afirma que “um dos principais desafios para o processo de consolidação da Reforma Psiquiátrica Brasileira é a formação de recursos humanos capazes de superar o paradigma da tutela do louco e da loucura”(2005, p. 43). Outros autores também argumentam:

O campo de saúde mental é um campo de lutas em que trabalhador/ usuário e sociedade     constroem novas formas de relação com a loucura e a diferença. Tal construção requer que ao menos o trabalhador esteja mais capacitado para negociar novos contratos sociais,  mais capacitado nos aspectos teórico, físico, psíquico e social para desencadear novas relações entre sociedade e saúde mental. (Rabelo& Torres, 2005, p.42)

Como tudo isso tem se efetivado na prática? Quem são esses trabalhadores de saúde mental? Como foram ou estão sendo preparados, formados, capacitados? Como constroem saberes/fazeres por meio de suas atividades? São muitas as questões: trabalho em equipe, em rede, no território, com usuário, familiares, comunidade. E o CAPS é nomeado como “carro-chefe” da Reforma Psiquiátrica, “pólo articulador” de toda Rede de Atenção em Saúde mental no município, se constituindo como um dispositivo responsável por “disparar” o movimento e funcionamento da Rede. Com essas questões desejo tornar evidente a complexidade de se construir trabalho nesses serviços, que pede a capacidade de manejar acontecimentos, para muito além de uma certa capacidade de previsibilidade, que um saber-fazer estruturado possa conter. Como nos diz Merhy, (2007) “...o trabalho no campo de saúde mental é de alta complexidade, múltiplo, interdisciplinar e interprofissional, transdisciplinar e intersetorial” .

Com base nessa linha de argumentação é que proponho o objetivo deste trabalho, apresentar reflexões sobre quais desafios impõe o cotidiano de trabalho num CAPS, para pensar sobre como esses trabalhadores têm se constituído trabalhadores de Saúde mental dentro dos princípios da Reforma Psiquiátrica.

Esse trabalho é parte de minha pesquisa de doutorado (em andamento) junto ao Programa de Pós-graduação em Psicologia Social-PUC/SP, no Núcleo de Pesquisa Trabalho e Ação social (NUTAS) e trata da temática “o trabalho e o trabalhador de Saúde Mental no contexto da Reforma Psiquiátrica”. Tem como eixo teórico-metodológico a Psicologia social na vertente Sócio-histórica. Elegeu-se como método de investigação o método qualitativo por se tratar de um estudo que leva em conta a compreensão das dimensões subjetivas da realidade, que não poderiam ser apreendidos pela quantificação, pois pretende desvelar aspectos não prescritos, não visíveis, mas o real no trabalho, isto é, aspectos constitutivos do ser e do fazer cotidiano.

 A pesquisa de campo foi iniciada em fevereiro de 2012 nos moldes da pesquisa participante, no CAPS II, no município de Maringá, PR, utilizando como procedimentos metodológicos a observação participante, entrevistas abertas e a Roda de conversa (Campos, 2000) como método de Co-gestão de coletivos.

Tratando-se de um estudo, em que a pesquisa de campo está em andamento, optou-se por tecer algumas reflexões a partir de alguns aspectos que têm sido apontados pelos trabalhadores como alguns “nós” no processo de construção do trabalho no CAPS, e dentre esses a formação e qualificação profissional aparece como um elo frágil da corrente, como um elemento que dificulta o processo de construção do trabalho pela equipe, pela falta de compreensão do que seja esse trabalho na sua singularidade (questões internas de organização do serviço, da equipe, de modelo de gestão, etc.) e na sua totalidade, enquanto, parte de uma Rede de Atenção em  Saúde Mental, regida por uma Política de Saúde Mental.

Para ilustrar esse aspecto frágil dentro do processo da Reforma, tentarei responder a primeira questão, tomando por base os trabalhadores do CAPS II, Maringá, PR, para pensar os impasses e desafios para a Reforma Psiquiátrica. Quem são esses trabalhadores? São profissionais de nível superior e técnico (Psicólogos, Assistente Social, enfermeiros, terapeuta ocupacional, técnicos de enfermagem e administrativos e zeladoras), formados por Instituições públicas e privadas, alguns aprovados em concurso público para trabalhar no serviço público do Município, portanto, sem saber no ato da aprovação, para que serviços seriam designados, outros transferidos de outros serviços. Mas o fato comum é que de uma equipe de 14 trabalhadores, 02 escolheram atuar em saúde mental. Quanto a formação profissional, se referindo à graduação, relatam que nunca estudaram sobre a Reforma Psiquiátrica dentro das disciplinas dos diferentes cursos de saúde e ao chegar no serviço, para alguns foi um misto de muito medo, insegurança, impotência que os acompanhou, pois o contato com “paciente psiquiátrico” e com a temática foi muito breve durante a formação, e outros, por já terem trabalhado no Hospital Psiquiátrico já “sabiam” ou pelo menos “tinham uma noção” de como lidar com a situação (outro perigo na reprodução das práticas manicomiais). A inserção dos trabalhadores no serviço se deu, para alguns nos moldes “Para-quedas” e para outros mediante leitura individual do manual do CAPS do Ministério da Saúde, e no mais, apreendendo no dia a dia e acompanhando as atividades dos profissionais que já estavam no serviço há mais tempo.

Não é intenção colocar o trabalhador como passivo ou vítima de todo processo, mas desejo justamente pensar que se esse trabalhador necessita estar engajado política e afetivamente nesse processo de transformação no trato coma loucura, não como trabalhadores reduzidos a técnicos, mas como “sujeitos conscientes e ativos” (Amarante, 2008, p.75), há de se pensar seriamente sobre todo processo de construção também desse trabalhador de saúde mental.     Refletir sobre a resposta a essa primeira questão, já informa sobre a complexidade e o desafio de se construir trabalho nesses espaços que são nomeados como substitutivos ao modelo manicomial. Para tanto pensar e agir na direção da criação de Programas de formação e capacitação profissional implica em incluir tal discussão na agenda das Políticas Públicas, para garantir tal direito aos trabalhadores de saúde mental e assegurar condições para que os mesmos sejam “porta-vozes” no processo de construção de um “outro lugar” para a loucura, fora dos muros, no território, na comunidade.

Mencionei brevemente esses pontos e me deterei apenas a eles, para apenas sinalizar que criar Serviços Substitutivos de Saúde Mental implica em ir muito além de um Decreto, do cumprimento de uma Portaria, mas implica em construir um amplo processo que envolva instituições formadoras, sindicatos, conselhos profissionais, etc., com intento de criar uma rede que opere conjuntamente com esse processo de construção de novos saberes e fazeres em saúde mental.

Concluo este trabalho com a afirmação de que construção de trabalho nesses serviços,  requer como primeiro passo um pensar e um fazer sobre os “Programas de Formação e Capacitação”, não nos moldes tradicionais e reducionistas, com foco no desenvolvimento de habilidades e competências para realização de tarefas prescritas, como no discurso empresarial, em que palavras como treinamento, capacitação, otimização de Recursos Humanos são tão presentes, e nem mesmo como um processo de simples transferência de conhecimentos, mas como um processo que se dê totalmente vinculado com a ação, com a prática e com a experiência, não em instituições fechadas, nem só nos moldes de “Residências” Multiprofissionais, mas talvez como “ Programas de formação intensiva no território” (Amarante, 2008, p.76), que como na perspectiva de Paulo Freire (2006) possibilite a emancipação, a criação de projetos, de perspectiva crítica, de ética e de responsabilidade, que são elementos fundamentais para pensar sobre a formação do trabalhador como um dos pilares centrais neste momento dentro da Reforma Psiquiátrica.

 

Referências

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Palavras-chave


Reforma psiquiátrica;Trabalho;Formação

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