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A ENTRADA NO ENSINO SUPERIOR: UMA COMPREENSÃO DOS SENTIDOS ATRIBUÍDOS AO TROTE UNIVERSITÁRIO
Thaís Serafim dos Santos, Jorge Antonio Vieira

Última alteração: 2012-07-25

Resumo


A entrada na faculdade é repleta de sentimentos ambíguos como, a ansiedade, o medo, a insegurança e a euforia. Este momento tão importante na vida de um indivíduo que ao ser aprovado em um exame classificatório de conhecimentos adquiridos no Ensino médio, o temido vestibular, prepara-se para uma nova etapa em sua vida, na qual se dedicará ao estudo de uma profissão. Os sentimentos relacionados tanto ao passar no vestibular como adentrar no ensino superior, representam para cada indivíduo uma gama de significados subjetivos. Esta entrada ao ensino superior, tão esperada por uns e tão temida por outros, é marcada por uma prática de caráter tradicional em nossa sociedade, qual seja, o trote universitário.

O trote universitário se caracteriza enquanto um rito de passagem de margem, pois o indivíduo que se prepara para a entrada em um novo mundo é colocado à margem, no sentido de estar entre duas situações das quais ele não faz parte, ou pelo menos ainda, por seus novatos, para cumprir uma série de instruções e normas que posteriormente o garantirão essa entrada (Vasconcelos, 1993), além disso, o indivíduo passa por um período de margem entre a adolescência e a vida adulta, ou a saída do ensino médio para a entrada no ensino superior e posteriormente à profissionalização. Esta passagem de margem (Van Gennep, 1987), no entanto, supõe a vivencia de uma série de outros ritos, os de separação em relação ao que fora vivido antes enquanto adolescente ou aluno do ensino médio e de agregação à entrada neste novo mundo, o da adultez e de adaptação ao novo ambiente, qual seja, a universidade.

Podemos perceber que a simbologia ritualística presente nos trotes e noticiadas pela mídia é composta por atitudes vexatórias, de subordinação de uns em relação a outros e até mesmo de violência (Santos & Vieira, 2011). Sendo assim, o objetivo desta pesquisa se pautou na compreensão e análise dos sentidos que são atribuídos a esta prática por aqueles que estão ingressando na Universidade. Para tanto, esta pesquisa foi realizada com dez acadêmicos dos cursos de Agronomia, Direito e Psicologia de uma Universidade estadual do Paraná, os quais responderam a uma entrevista semi-estruturada que objetivava analisar como estes compreendem o trote universitário, o que esperavam do fenômeno antes de o terem vivenciado, se após a sua vivência sua compreensão modificou e por fim, se o consideram uma prática violenta.

Dentre os dez entrevistados oito deles se mostraram a favor das práticas trotistas, usando como justificativa a importância do fenômeno para a integração entre calouros e veteranos na universidade.  Respostas como “o trote é uma iniciação, é um rito de passagem para a socialização na universidade” (sic) e “o trote é uma parte importante do processo, desde o momento em que se passa no vestibular até a entrada na universidade” (sic), fundamenta o que vínhamos falando a respeito deste fenômeno se configurar enquanto uma passagem entre duas esferas da educação, quais sejam, ensino médio e ensino superior, esta passagem para os entrevistados, independente da forma como é realizada, se caracteriza enquanto um momento “muito importante para perpetuar a tradição e para a integração com os veteranos” (sic).

De acordo com Colloca (2003) o trote universitário não passa de um elemento espetacular nesta sociedade de espetáculos, uma vez que temos uma grande valorização do ter, do mostrar-se em detrimento do ser. É justamente por esta necessidade de aparecer, que a tradição dos trotes permanece a todo furor. Percebemos a importância que este fenômeno tem para os inúmeros jovens que orgulhosamente exibem pelas ruas das cidades camisetas e adesivos com o logotipo da instituição ao qual foram aprovados, com o intuito de serem reconhecidos enquanto universitários respeitáveis, pela competência que tiveram ao serem aprovados no vestibular. Também devemos atentar para a importância de se portar símbolos e marcas no corpo (como o raspar dos cabelos e a pintura dos corpos) que mostrem a sociedade em geral que este indivíduo agora é um universitário e, portanto, precisa ser reconhecido como tal.

Os entrevistados, em sua maioria, também relataram que mesmo sentindo vontade de participar do trote, tinham receio do que pudesse ser feito, um medo aliado “a fama que o curso tinha de trotes violentos” e após o terem vivenciado perceberam que “não é mais que uma brincadeira” (sic).  Neste sentido

Os trotes universitários fazem parte do ritual de entrada na universidade. Suas atividades      tradicionais, como pintura do corpo e do rosto, pedágio nas ruas da cidade, gritos, não são consideradas agressivas, humilhantes, mas “brincadeiras” inofensivas que fazem parte desta tradição. Essas atividades são justificadas pela necessidade de exibição das marcas de uma mudança que deve ser mostrada para que todos reconheçam aquela pessoa como um universitário. (Colloca, 2003, p. 27)

No que se refere ao papel de integração relatado por estes indivíduos, pudemos perceber a necessidade de se sentirem pertencentes a este novo mundo, a este ambiente completamente novo, no qual eles vivenciam um sentimento de desamparo, onde o ciclo de amizades já não é mais o mesmo, onde os professores já não são os mesmos e onde o método de ensino passa a ser outro, para tanto a importância de uma atividade que os façam sentir que fazem parte deste novo lugar, uma atividade que una, simbolicamente, veteranos e calouros como forma de favorecer as novas relações.  

Segundo Sartre (1999) o fato de estar comprometido com os outros em uma atividade e ritmo comuns faz com que o indivíduo sinta-se pertencente ao coletivo, assim o ritmo que o indivíduo faz nascer, nasce consigo e lateralmente com o ritmo coletivo, é desta forma, seu ritmo na medida em que é ritmo para os outros, e assim reciprocamente, e esta é justamente a essência da experiência do nós-sujeito, a de chegar finalmente a um ritmo comum, coletivo. No entanto este comprometimento trata-se apenas de uma maneira de sentir-se no meio dos outros, símbolo fugaz de uma unidade absoluta que não pode se efetivar, condição de totalidade já feita, a qual nunca será alcançada. Sendo assim, podem os outros que participam comigo desse sentimento de nós, não sentirem-se vinculados, uma vez que esta sensação de pertencer e ser um coletivo se configura como uma experiência psicológica individual. No entanto, mesmo que eu e os outros nos sintamos como um só, esse sentimento não indica uma consciência coletiva, já que as consciências continuam isoladas umas das outras.

Ao indagar a estes entrevistados se consideravam o trote como uma forma de violência, todos relataram que não, pois de acordo com suas concepções o mesmo se configura como uma brincadeira inofensiva. Uma das entrevistadas mencionou que algumas de suas colegas se sentiram humilhadas com alguns apelidos pejorativos que lhes deram, no entanto, disse acreditar que tais atitudes não passam de uma grande brincadeira, e essa deveria ser a percepção de todos os calouros, ao invés de o levarem tão a sério. Neste momento cabe pontuarmos o quão difícil é percebermos a violência implícita contida em algumas práticas, uma vez que em nosso imaginário violência é sinônimo de agressão física, desta forma, a violência que compõe as agressões verbais e as humilhações permanecem envoltas por uma teia denominada de brincadeira.

Dando continuidade a esta percepção de violência implícita, reessaltamos que dois entrevistados manifestaram seu descontentamento perante as práticas afirmando, por exemplo, ser o trote “uma perda de tempo, uma tradição medieval arraigada nas universidades e que nada tem a ver com um ambiente que deveria ser o da maturidade” (sic). Este mesmo acadêmico confessou nunca ter sentido vontade de participar do trote e por medo do que viria acontecer quando adentrasse a faculdade, raspou os próprios cabelos, antes que seus veteranos o fizessem. Acredita que “as pessoas acham que vão fazer amigos no trote, no entanto não existe nenhuma interação nessas práticas” (sic) e ainda afirmou ser “uma prática violenta, pois nela contém inúmeras situações vexatórias e de subordinação” (sic).

A segunda entrevistada relatou não ter participado do trote aplicado fora da instituição, no entanto teve de participar da semana do calouro na universidade, em que os veteranos levavam os calouros para conhecerem os diversos locais da universidade, e solicitavam-lhes a realização de algumas atividades. Aqueles que não obedeciam eram colocados em uma lista roxa, na qual eles ficariam marcados e quando precisassem de qualquer tipo de ajuda esta lhes seria negada. A esta situação, podemos relacionar às práticas atitudes de hierarquização e relações de poder, na qual os veteranos, considerados pela entrevistada detentores do poder vêem o calouro apenas como um outro, não havendo tecimento, flexibilidade e dialética, onde este outro surgirá diante de mim com suas significações particulares (tímido, antipático, feio, etc) e assim o veterano o captará como um ser cuja transcendência é transcendida, ou seja, ele será sempre e nada além do que os atributos nele encontrados, compondo desta forma, como afirma Schneider (2011), a estrutura alienante de nossa sociedade. Para Fayad (2010) é nesta tentativa de transformar o outro em objeto transcendido, que o carrasco, percebido aqui como a figura do veterano, mostra seu poder e seu controle ao tentar dominar a liberdade do outro.

 Uma atividade que segundo a entrevistada lhe gerou vergonha foi a de cantar pelo campus a música com os dizeres: “eu faço Psicologia, porque eu gosto de putaria. Freud já dizia, a libido é a melhor das energias” (sic). A acadêmica finalizou sua entrevista dizendo que “o trote é uma agressão, uma violência psicológica que pode trazer diversas conseqüências” (sic).

A esta última fala podemos trazer como contribuição da nossa primeira pesquisa intitulada “Trote universitário: rito de passagem ou bullying?” a qual originou esta nova investigação, a compreensão do trote universitário enquanto uma possibilidade de tornar-se bullying na universidade.  As práticas trotistas que contemplam atitudes de humilhação física e/ou verbal, de subordinação de calouros perante seus veteranos e de agressões físicas, podem tornar-se uma prática de bullying se forem realizadas de forma repetitiva ao longo do ano letivo, como por exemplo, com a utilização de apelidos pejorativos (originados na aplicação do trote propriamente dito), com a imposição da realização de atividades, entre outras situações, causando diversos tipos de conseqüências aos que dele se submetem, tanto de ordem física, psíquica ou social, podendo o ambiente educacional transformar-se em ambiente de terror, medo e sofrimento. (Santos & Vieira, 2011)

É importante ressaltar que o nosso propósito com esta pesquisa não era o de quantificar um sentido vinculado ao trote universitário, mas sim compreender e analisar através de alguns relatos quais são os sentidos que os ingressantes na universidade atribuem a esta prática. Sendo assim, ficou extremamente evidente o sentido de integração que o trote universitário possui, integração esta entre calouros e veteranos e calouros em relação à um ambiente novo, desconhecido. A este sentido pudemos perceber que para os indivíduos que adentram a universidade, segundo seus próprios relatos, há uma funcionalidade, pois necessitam desta prática para sentir-se pertencente ao lugar/espaço que é a universidade. Ao sentido de integração, notamos outro importante sentido vinculado, qual seja, o de que as práticas trotistas se configuram como brincadeiras inofensivas. Outro importante sentido evidenciado nas entrevistas, mesmo que por uma minoria, é o de uma prática violenta e desnecessária ao contexto educacional, sendo assim, notamos a importância da existência de uma prática que insira estes novos acadêmicos a um ambiente tão diferente da escola, no entanto é preciso atentar para a forma como o trote é e tem sido realizado ao longo da história, com um caráter tipicamente violento. Para que o trote realmente possua um caráter de integração é necessário que mais do que uma mudança em seu status de violência, suas práticas sejam revistas em direção a algo mais humanizador, que promova a interação e a inserção dos novos alunos à Universidade, garantindo o papel da mesma em formar cidadãos éticos, responsáveis e compromissados com a realidade profissional e social.

Palavras-chave


Ensino superior; Trote universitário; Sentidos

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